Brasil: O que rola agora

Como enfrentar um governo anti-indígena

Por Bruno Boti Bernardi, no Boletim Lua Nova | Imagem: Instituto Vladimir Herzog

Neste mês do Abril Indígena, marcado tradicionalmente pela visibilidade das inúmeras lutas e mobilizações dos povos indígenas em nome dos seus direitos secularmente desrespeitados, cumpriram-se os cem primeiros dias do novo governo federal. Frente aos reclamos, demandas e críticas dos povos originários que historicamente são alvos de inúmeras e graves violações que impedem a conservação e reprodução dos seus modos de vida e da sua própria existência, é fundamental fazer um balanço dos recentes retrocessos e ameaças que têm aumentado o cenário de violência e de negação de direitos, expondo ainda mais os indígenas aos efeitos negativos da expansão agropecuária, concentração fundiária, desmatamento, expulsão de terras ancestrais, pressão de atividades de extrativismo mineral, mega empreendimentos, discriminação racial e discursos de estigmatização e desumanização.

Já no pacote dos primeiros atos administrativos do novo governo, em resposta à promessa de campanha de que não haveria “nem um centímetro a mais para terras indígenas”[2], a Medida Provisória 870, de 1 de janeiro de 2019, e o Decreto 9.667, de 2 de janeiro, transferiram a competência sobre demarcação e licenciamento ambiental nas terras indígenas (TIs) da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), controlado pelos ruralistas, adversários históricos do movimento indígena e da sua reivindicação de demarcação de terras[3]. Além de não contar, segundo o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, com “competência técnica, expertise, experiência, recursos humanos e tradição histórica e institucional no âmbito do Estado brasileiro para execução de políticas públicas voltadas à efetivação do direito à terra e à proteção dos direitos humanos dos povos indígenas”[4], o MAPA está muito suscetível às pressões de interesses econômicos e políticos contrários às demarcações e favoráveis à exploração das terras indígenas já delimitadas. Nesse sentido, o retrocesso é só equivalente à situação da década de 1970, no auge da ditadura, quando a FUNAI estava vinculada ao Ministério do Interior, que encabeçava a política de ocupação da Amazônia com resultados catastróficos[5].

Se, antes dessas medidas, a demarcação de novas terras indígenas já era cada vez mais rara nos últimos anos em razão das pressões do ruralismo, as mudanças agravam a situação e, segundo Victoria Tauli-Corpuz, Relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos dos Povos Indígenas, são “regressiva[s], porque o Ministério da Agricultura é o órgão que apoia a expansão de áreas para a produção agrícola de exportação e para a criação de gado”[6], atividades essas que avançam sobre os territórios tradicionais. No tocante ao licenciamento ambiental, a tendência é que haja facilitação para a construção de obras como ferrovias, rodovias, hidroelétricas e linhas de transmissão em terras indígenas, tal como já foi manifestado no plano do linhão entre Manaus e Boa Vista que afetará o povo Waimiri-Atroari[7]. Tal quadro é ainda mais preocupante porque a diplomacia brasileira não tem escondido sua inconformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um documento jurídico internacional ao qual o Brasil está legalmente vinculado que exige o consentimento das comunidades indígenas afetadas para que essas obras sejam liberadas. Nesse sentido, coloca-se em risco a realização da consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas antes da aprovação desses empreendimentos[8].

Essas decisões têm criado uma atmosfera política anti-indígena e um contexto propício para a ação de garimpeiros, madeireiros, grileiros, pistoleiros e outros grupos dedicados à invasão de terras indígenas e violência contra as suas comunidades. Alastra-se assim uma nova fase de esbulho possessório e roubo de terras já demarcadas, com comércio de lotes, derrubada das matas e instalação de unidades de produção e exploração agropecuária e mineral. Há pressão para rever trabalhos antropológicos de áreas indígenas já reconhecidas e em Estados como Pará (TI Arara), Maranhão (TIs Arariboia e Awá Guajá) e Rondônia são cada vez mais frequentes os casos de invasão[9].

Em janeiro, a terra indígena Uru-eu-wau-wau, próxima ao município de Governador Jorge Teixeira (RO), foi alvo de ataques por 100 pessoas armadas. Ainda em Rondônia, no mesmo mês, o povo Karipuna também teve suas terras invadidas e o Ministério Público Federal teme a possibilidade de conflitos sangrentos. Na TI Yanomami, em Roraima, a desativação de bases de proteção do Exército permite que entre 6 e 7 mil garimpeiros façam a retirada ilegal de ouro, o que gera violência, doenças, desmatamento, assoreamento dos rios e contaminação do meio ambiente e das pessoas por metais pesados. Em meio a esse panorama, agravado pela redução do orçamento e fechamento de postos de proteção da FUNAI, os povos isolados também se encontram em situação de risco altíssimo.

No plano do Judiciário, a perspectiva de julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário n. 1017365 relativo à posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãno, da comunidade indígena Xokleng Laklãno, situada em Santa Catarina, coloca em destaque mais uma vez a tese do marco temporal que, nos últimos anos, tem sido aplicada por diversos tribunais para anular processos de demarcação. Derivada de dezenove condicionantes para o reconhecimento de terras indígenas que constam do julgamento da TI Raposa Serra do Sol (Petição 3.338/2009), a tese do marco temporal estabelece que terras já demarcadas não podem ser expandidas e que os indígenas só terão direito à demarcação das terras que efetivamente ocupavam na data da promulgação da Constituição de 1988[10].

Como o caso relativo à demarcação da terra do povo Xokleng terá repercussão geral, a decisão a ser tomada pautará a interpretação futura do conceito de terra tradicionalmente ocupada em novos juízos, de modo que o STF tem diante de si duas opções: reconhecer a teoria do indigenato e o direito territorial originário dos indígenas, tal qual plasmado pelo artigo 231 da Constituição Federal de 1988, ou reafirmar de uma vez por todas as teses do marco temporal e do esbulho renitente, o que permitiria a demarcação apenas das áreas em que se demonstre existência de posse efetiva em 5 de outubro de 1988 ou de conflito possessório jurídico ou físico nessa mesma data[11]. Vale recordar que, desde 2017, o Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU) já obriga toda a administração pública federal, inclusive a FUNAI e seus advogados, a cumprir a tese do marco temporal.

Finalmente, para além de todas essas dinâmicas, tem avançado de maneira preocupante a criminalização e repressão dos protestos e mobilizações de grupos e entidades vinculados ao movimento indígena. A portaria n. 441 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de 16 de abril de 2019, autorizou o uso da Força Nacional de Segurança na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes por 33 dias, a pedido do Gabinete de Segurança Institucional. Um dos motivadores de tal decisão é a realização, entre 24 e 26 de abril, na capital federal, do Acampamento Terra Livre (ATL), o qual há 15 anos promove o encontro de lideranças indígenas nacionais e internacionais e a luta pela garantia dos direitos dos povos indígenas.

Em outra frente, relativa à saúde indígena, também ocorreu cerceamento do direito à livre manifestação. Recentemente, começaram a circular planos e propostas de municipalizar e estadualizar a saúde indígena, já tradicionalmente depauperada por sucessivos cortes de verbas. Caso fosse concretizada, a aplicação da municipalização nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste e a estadualização nas demais áreas do país significariam o fim de um subsistema especializado, diferenciado e próprio de atendimento, em acordo com as especificidades culturais dos indígenas, expondo-os a um quadro de discriminação e racismo estrutural que os afastaria ainda mais de uma atenção de saúde decente. Isso porque, no plano local de estados e municípios, a administração pública não só não está preparada para essa demanda, como também possui vínculos mais estreitos com setores políticos e econômicos contrários aos direitos indígenas, o que gera um clima de intolerância social contrário à prestação de serviços de saúde.

Em resposta a esses planos, ocorreram vários mobilizações de povos indígenas por todo o país e o Ministério da Saúde desistiu de extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Porém, no Paraná, em virtude dos protestos indígenas, uma ação de interdito proibitório movida pela Advocacia-Geral da União (AGU) e deferida pela 1º Vara Federal de Guaíra proíbe os Avá-Guarani de fazer manifestações em rodovias, estipulando desocupação imediata, aplicação de multas e recolhimento de crianças e menores indígenas presentes nos atos.[12] Tal caso acende um alerta sobre possível nova diretriz da AGU que poderia se estender para outras regiões do país e inclusive ser aplicada para outros movimentos sociais em um momento em que se discute a ampliação da lei antiterrorismo para coibir e penalizar protestos sociais.

Frente a tantas ameaças, riscos e retrocessos em pouco mais de três meses de governo, a articulação dos povos indígenas em conjunto com as organizações indigenistas tem gerado pressões e mobilizações no Brasil e exterior que denunciam os ataques cada vez mais sistemáticos e generalizados. O Estado brasileiro tem o dever de cumprir diversas obrigações constitucionais e internacionais no tocante aos direitos dos povos indígenas, mas suas instituições oficiais têm imposto inúmeros bloqueios domésticos à efetivação dessas garantias. Em cenário marcado não só pela falta de recursos judiciais eficazes e acessíveis, mas também pela preponderância de interesses políticos e econômicos contrários às demarcações de terras e outros direitos dos povos indígenas, não resta alternativa que não a continuidade da luta social e o acionamento de atores e mecanismos internacionais de direitos humanos.

[1] Professor Adjunto de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)

[2]https://deolhonosruralistas.com.br/2018/02/08/nem-um-centimetro-mais-para-terras-indigenas-diz-bolsonaro/

[3] Além disso, a FUNAI foi deslocada do Ministério da Justiça para o recém-criado Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, o que foi lido pelo movimento indígena e organizações indigenistas como mais um sinal da sua perda de relevância e esvaziamento, agravando assim o desmonte do órgão em curso nos últimos anos. O orçamento da FUNAI passou de R$ 190 milhões, em 2013, para R$ 117 milhões em 2018. Mais recentemente, por meio do Decreto 9.711/2019, 90% do orçamento da FUNAI previsto na Lei Orçamentária Anual foi contingenciado. Em sua visita in loco ao Brasil em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos documentou “enfraquecimento progressivo institucional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI)”. Pronunciamento disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf.

[4] Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Recomendação Nº 02, de 07 de FEVEREIRO de 2019. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-humanos-cndh/Recomendao2MP870FUNAI.pdf

[5] A transferência da demarcação de terras para o MAPA equivale na prática, em alguma medida, à proposta da PEC 215/2000, antiga demanda da bancada ruralista. Essa proposta de emenda à Constituição buscava passar do Executivo para o Legislativo a prerrogativa das demarcações. Dado que o MAPA é liderado pela ex-líder da Frente Parlamentar da Agropecuária, cresceu o poder de veto desses legisladores sobre o processo, embora o tema formalmente continue sob a competência do Executivo.

[6] A declaração está disponível em: https://www.dw.com/en/jair-bolsonaros-stance-on-indigenous-people-is-discriminatory-and-racist/a-46959983

[7] Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, durante a ditadura civil-militar, no contexto da construção da BR 174 e da hidroelétrica de Balbina, ao menos 2.650 indígenas da etnia Waimiri-Atroari foram mortos, o que quase dizimou esse povo por completo. Sobre o linhão, ver:https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/02/27/governo-anuncia-linha-de-energia-entre-rr-e-am-e-pode-acelerar-licencas.htm

[8] A esse respeito, conferir: https://www.valor.com.br/brasil/6183431/brasil-e-voto-isolado-na-oit-e-ameaca-deixar-convencao-sobre-povos-indigenas

[9] A respeito dos casos descritos a seguir, consultar:

https://epoca.globo.com/guilherme-amado/posseiros-armados-invadem-terras-indigenas-em-rondonia-dizendo-que-agora-bolsonaro-presidente-23415513;https://www.greenpeace.org/brasil/blog/grileiros-intensificam-invasao-na-terra-indigena-karipuna-em-rondonia/https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento-blog-do-rio-negro/campea-de-requerimentos-minerarios-terra-indigena-yanomami-sofre-com-explosao-do-garimpo

[10] Ainda que o próprio STF tenha afirmado que a tese do marco temporal não possui aplicação automática para todos os casos de demarcação, a Segunda Turma do tribunal anulou os atos de demarcação das TIs Guyraroká e Limão Verde, no Mato Grosso do Sul.

[11] Sobre esse tema, ver: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato-vs-teoria-do-fato-indigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo-interno

[12] Ver: https://racismoambiental.net.br/2019/04/08/indigenas-no-parana-sao-impedidos-de-realizar-manifestacao-em-vias-publicas-no-oeste-do-estado/

Fonte: outras palavras

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